O que é o luto perinatal?
A notícia da orca J35 que carregou seu filhote sem vida por 17 dias nos trouxe à tona a reflexão sobre a natureza do luto perinatal e a dificuldade e intensidade que envolve a dor da perda.
Não são raras as vezes em que a natureza nos faz recordar do quão simples somos e da harmonia que devemos manter com nossos instintos e essência. Em meados do final do mês de Julho de 2018, esta notícia nos trouxe a reflexão para um tema intenso, delicado e, embora presente, ainda pouco abordado: o luto perinatal. A orca nomeada como J35 carregou bravamente seu filhote recém-nascido que perdeu a vida poucas horas após seu nascimento.
Por pelo menos 17 dias nadou cerca de 120 km diariamente sem alimentação carregando seu filhote sem vida. A notícia de seu comportamento chamou a atenção de expectadores por todo o mundo que a acompanharam nesta jornada, despertando preocupação nos biólogos que inevitavelmente pensavam em possíveis intervenções caso ela continuasse resistindo em deixar o filhote para que pudesse se alimentar novamente mas também despertou a sensibilidade dos amantes da natureza e principalmente das mães, que mesmo sem perceber, refletiram sobre o luto perinatal e a dor que o envolve.
A dor do luto perinatal
O luto perinatal é o processo e elaboração de luto pela perda de um filho ainda na gestação ou em sua primeira semana de vida.
A morte e elaboração do luto ainda é considerado um tema tabu para maioria das pessoas. Até aqueles que se sentem familiarizados com a ideia de que a vida possa ser interrompida a qualquer momento se surpreendem com as intensas emoções que podem ser vividas no momento de perda, principalmente diante da perda de um filho.
A complexidade de pensamentos e emoções nunca permitirá que a morte deixe de ser temida ou que leve a crer que a elaboração da perda seja simples, mas quando pensamos no luto perinatal a experiência da dor é intensificada principalmente pela falta de conhecimentos e empatia do entorno da mãe enlutada. J35 nos trouxe sabedoria sobre a dor do luto e nos leva a compreensão de que essa dor não só é real, como integrante de nossa natureza.
A falta de empatia
Todos aqueles que lidam com uma perda sofrem recordando memórias, saudades e pela dor que envolve a interrupção do vínculo com alguém querido. Mas e nos casos do luto perinatal, onde o rosto, gestos e personalidade ainda não estavam presentes? Nos permitimos sofrer? Permitimos a dor do outro diante do que não tivemos a oportunidade de materializar?
O mais triste agravante do luto perinatal é a falta de empatia diante da intensa dor sofrida pela mãe. Apenas a mãe experencia o fortalecimento do vínculo, reservando a si memórias, expectativas e familiaridade com seu pequeno bebê ainda em formação.
Nas memórias e no coração da mãe nascem os primeiros sonhos, expectativas, laços de carinho e de amor. Antes mesmo do nascimento, a mãe se vincula com seu bebê, gestando sua habilidade materna e se sentindo próxima da vida que já existe dentro de si e que está próxima de vir ao mundo se fazendo presente aos olhos daqueles que ainda não podem experimentar das sensações de alguém ainda tão pequeno.
A interrupção precoce da vida deste pequeno bebê não permite aos familiares, mesmo os mais próximos, que se vinculem com a mesma capacidade e intensidade de sua mãe, fazendo com que diante da perda, por melhores que sejam as intenções, o afago não autorize o sofrimento da mãe enlutada. O quarto que já estava pronto é desfeito, os brinquedos e roupas ainda novas ganham um novo destino… “Logo você irá engravidar novamente”, são as palavras das pessoas próximas impossibilitadas de pensar que uma nova gestação não substitui a gestação que gerava aquele filho.
Um novo filho não substitui o filho perdido. Sumir com os rastros de que estamos diante de uma grande perda não cala a dor barulhenta que cada mãe enlutada carrega dentro de si.
E sem os objetos que tornam sua história real, com as palavras de incentivo pelo esquecimento e substituição e sem o amparo necessário para entrar em contato consigo mesma, a mãe sofre calada, carregando dentro de si um luto invisível, por lembranças que existem apenas em suas próprias memórias cognitivas e emocionais.
J35 nos permite afirmar a natureza da mãe enlutada
Quando os filhotes das orcas não sobrevivem, é característico da espécie que os carreguem em média por 7 dias. J35 se destacou relutando em aceitar a perda de seu filhote que falecera poucos momentos após seu nascimento, carregando-o por pelo menos 17 dias. Foi possível observar a luta em sua jornada para elaborar seu luto, carregando seu filhote sem vida pelo oceano e resistindo para que o corpo de seu bebê não afundasse.
Privando-se de alimentos e desafiando sua própria natureza, J35 viveu uma intensa jornada diante da perda.
O respeito e empatia
Outro fato curioso desta jornada que nos permite refletir e aprender é o relato de um morador da ilha das proximidades onde as orcas dão à luz, que presenciou a movimentação das orcas do grupo diante do filhote morto.
“Ao pôr-do-sol, um grupo de cinco ou seis orcas se reuniram próximo da superfície nadando de maneira circular e harmônica por aproximadamente duas horas”, disse.
O fato torna inevitável não refletir que a empatia e o respeito integram nossa essência, e ao nos permitir entrar em contato com nossa própria natureza, em momentos como a dor do luto perinatal, nossas atitudes poderão ser diferentes. Além disso, nos recorda do quanto necessitamos de rituais para elaboração do luto e da despedida.
Apoio e elaboração
Da mesma maneira que o grupo de orcas encontrou formas que a permitiram elaborar a perda do filhote, a mãe enlutada durante o luto perinatal também requer apoio, compreensão e respeito.
Permitir a expressão da dor da perda, respeitar o tempo para elaboração do fato e não incentivar ou apressar comportamentos como o de se desfazer de pertences do bebê são essenciais.
Para a mãe, não se torna relevante se o seu filho viveu alguns meses dentro de si, alguns dias após seu nascimento ou se esteve presente por anos. A perda é sempre uma perda e respeitar a individualidade do bebê, das memórias e sua subjetividade é essencial.